Publicado no Brazil Journal em 14 de julho de 2024
Quando cheguei ao Reino Unido, em 2014, encontrei um grande debate infinito sobre a independência da Escócia, que sempre tive a impressão de que era inócuo. No entanto, aprendi nesses 10 anos que, acima de tudo, eles adoram o debate pelo debate, pois acreditam no poder da troca de ideias e de testar hipóteses, mesmo que sejam contrárias à essas ideias. Encontrei esse mesmo comportamento nas companhias privadas, dando-me a impressão de uma grande perda de tempo. Hoje, reconheço o poder de provocar discussões de diferentes pontos de vista para melhorar as decisões.
Fui surpreendido pela maneira como o DIT (Department International Trade) foi solícito à minha decisão de vir fazer negócios no Reino Unido. Depois, vi que, além de uma estratégia de Estado para incentivar negócios, todo o funcionalismo público inglês é voltado para garantir a cidadania. Percebi no comportamento da Rainha Elizabeth II um modelo de como atuar nos temas públicos com disciplina e o sentido de que o exemplo vem de cima. Presenciei ela tirar do seu filho os títulos de realeza pelo envolvimento em um escândalo. Tive, portanto, uma experiência única de viver dentro de uma democracia liberal, cuja definição é, acima de tudo, a igualdade de oportunidade promovida por políticas públicas de Estado. Não é perfeita, mas claramente existe um senso de buscar fazê-la o máximo possível.
No dia 24 de junho de 2016, acordei às 3 horas da manhã, com insônia, e levei um susto quando vi que o Brexit, contra todas as pesquisas, tinha vencido com 51% dos votos. Considero a decisão mais estúpida que um país já tomou - afinal, por que abdicar de ser o centro financeiro do bloco europeu, ainda mais estando dentro da Comunidade Europeia com uma moeda própria? Para mim, era óbvio que a elite econômica iria mover o mundo para reverter essa decisão antes de ser implementada. Minha convicção durou pouco, pois, a todos que perguntei, a resposta era a mesma: ‘eu sou contra, porém levamos muito tempo para construir nossa democracia, logo não vai ser um engano que vai fazer com que não se honre uma eleição’.
Todos nós soubemos depois que essa eleição foi a primeira em que a extrema-direita usou suas técnicas de manipulação da verdade, e entendemos o que era “Cambridge Analytica” etc. Porém, mesmo assim, os britânicos honraram o voto sem pestanejar. Nesses 10 anos, vi o partido conservador inglês, até então hegemônico pelos últimos 14 anos, definhar em sucessivos enganos a ponto de que, no último dia 4 de julho, os trabalhistas tiveram uma vitória histórica, conquistando 412 cadeiras das 621 do Parlamento.
Vi o partido trabalhista mudar radicalmente sua liderança de extrema-esquerda de Corbyn para a “semi-Blair” de Sir Keir. Uma ruptura imensa depois de 14 anos. A passagem de bastão, como sempre, foi em um dia. Transição de um dia só é possível onde a alternância do poder é um valor e parte esperada do processo. Os Tories, desgastados, deixam o governo menores que nunca, porém desejando boa sorte a quem chega, conforme deixou claro Mr. Rishi Sunak em seu último discurso como Primeiro-Ministro: "Embora ele tenha sido meu oponente político, Sir Keir Starmer em breve se tornará nosso primeiro-ministro. Nesse cargo, seus sucessos serão todos os nossos sucessos, e desejo a ele e sua família tudo de bom."
Depois de 10 anos, sou convicto de que (1) debater é parte do processo de viver em sociedade e precisa ser ensinado nas escolas, (2) políticas públicas são a base da democracia liberal, (3) o voto é sagrado, e (4) pode-se errar muito em governos, mas sempre há como corrigir os enganos, desde que os princípios básicos democráticos do Estado de Direito sejam um valor de cada um de nós, garantido pela alternância pacífica e civilizada de poder.
No meio da cacofonia de vozes radicais na política que estamos assistindo em alguns países, no meio do ambiente de transformação digital que encanta e ameaça o status quo e no meio da intolerância que campeia o debate público, o exemplo do Reino Unido é um sopro de ar fresco.
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